domingo, 2 de setembro de 2012

Silêncio

Bete Tezine, Silêncio, 2012.
Acumulação, 26 x 36 cm.





Pior é que eu berrei. Berrei com o pior tipo de desespero do mundo. Meu silêncio, meu conformismo, minha aceitação,
minha quase maturidade. Eu tenho a impressão que a hora que eu chorar, vai ser das coisas mais tristes do mundo.

(Tati Bernardi)








             A proposta de produção de uma obra em que estivesse presente o conceito de acumulação chegou, para mim, justamente no momento em que descobri estar acometida pela Esclerose Múltipla e a necessidade do uso do interferon em forma de injeção. Assim, diante da expectativa de ficar dependente de um medicamente que, sabidamente, possui uma gama considerável de efeitos colaterais, não foi muito difícil a decisão acerca de que tipo de objeto acumular. Justificando o trabalho, escrevi o texto abaixo:

            O dicionário Aurélio da língua portuguesa define a verbete acumulação como sendo “1. Ato ou efeito de acumular. 2. Aumento, acréscimo. 3. Ajuntamento de pessoas ou coisas”. Por sua vez, acumular, segundo o mesmo dicionário,  significa “1. Pôr em cúmulo ou montão; amontoar. 2. Ajuntar, reunir (...)”
            Diante dessas definições, notamos que todos nós, no decorrer da vida, nos tornamos acumuladores.
            Somos acumuladores de ideias, de sonhos, de alegrias, de tristezas, de lembranças, de saudades... Acumulamos frustrações, realizações, tentativas de mudanças em diversos segmentos da vida. Alguns acumulam vitórias, outros derrotas. Há aqueles que acumulam paixões, vícios, ilusões, desilusões, dores do corpo e da alma... Existem os acumuladores de riquezas e, também, os de misérias. Alguns acumulam amigos, enquanto outros acumulam inimigos. Acumulam-se objetos inúteis e outros objetos não tão inúteis. Há acumulações de sapatos, roupas, maquiagens, perfumes, bolsas, relógios, carros... Mas, sobretudo, existem os acumuladores de esperanças.
            Acumular esperanças é o que tenho feito há tanto tempo em minha vida que nem me lembro mais. Acumulo esperanças de que meus sonhos se realizem, de que as tempestades se acalmem, de que as dores, tanto do corpo quanto da alma, se tornem, ao menos, suportáveis. É, eu tenho vivido, mesmo, da acumulação de esperanças. Tenho esperado pacientemente por um dia que não sei mais se chegará... Mas, mesmo assim,  continuo acumulando esperanças.
            Desse modo, diante da proposta de produção de uma obra em que estivesse presente o conceito de acumulação, justamente no período em que estou tendo uma necessidade quase insana de acumular ainda mais esperanças, resolvi materializar o sofrimento que tenho vivido pela descoberta de uma enfermidade sem cura.
            Em fevereiro de 2012, após uma maratona de exames, recebi o diagnóstico de que sou portadora de esclerose múltipla. Não gosto do termo portadora, pois dá a falsa impressão de que podemos nos livrar da doença quando bem entendermos, porém não é assim, pois, uma vez que ela nos tenha atingido, ela não nos abandona mais; contudo, é assim que a medicina define quem desenvolve a enfermidade.
            Depois disso, entrei em um período em que passei a acumular, simultaneamente, alívio e medo. Alívio por descobrir o que tenho, por saber que eu não sou apenas uma pessoa hipocondríaca, por saber que tudo o que eu sinto, há anos, e que os médicos não achavam respostas, não eram simplesmente doenças psicossomáticas, doenças criadas pela minha mente. Medo, por me descobrir acometida por uma doença degenerativa sem cura até os dias atuais. Medo do futuro, medo do que me aguarda, medo de me tornar incapaz, medo, medo, medo...
            Muitos me dirão, como já me disseram, que a esclerose múltipla, hoje, não é mais tão assustadora quanto foi há alguns anos atrás. Meu consciente sabe disso, quem não sabe são as minhas emoções. Eu sei que ela não incapacita mais tão rapidamente quanto no passado, porém, é uma doença imprevisível, que ninguém sabe como irá evoluir, nem quando meu próprio sistema imunológico irá atacar, novamente, meu sistema nervoso central e quais sequelas esses ataques deixarão.
            É uma enfermidade que me acompanhará pelo resto dos meus dias e que teima, a todo instante, em me lembrar que ela está ali, mesmo sendo invisível ao olhar dos outros. Sim, invisível, pois quando ainda não deixou sequelas vísiveis (uso de apoio, cadeira de rodas, cegueira, atrofias...), ninguém detecta a sua presença sem que falemos dela, exceto o seu portador, que sente os seus efeitos 24 horas por dia. São tremores, choques, fraquezas, dormências, fadiga, dores neurológicas, intolerância ao calor, instabilidade emocional...
            Atualmente, a maioria dos medicamentos disponíveis para retardar a progressão da doença são em forma de injeções. Assim, iniciarei no dia 02 de abril de 2012, às 23 h, o uso das injeções, que eu me autoaplicarei, dia sim, dia não, por tempo indeterminado, a menos que a medicina encontre a cura para a doença. Essa é mais uma esperança que acumulo. 
            Diante de tudo isso, decidi por acumular seringas e agulhas para injeções como forma de tornar física toda a angústia que me atormenta, pois a opção pelo uso das injeções envolve uma dualidade de sentimentos: sem o medicamento a esclerose progride mais rapidamente, levando à incapacidade em um tempo menor; com o uso dele, a esclerose desacelera sua progressão, no entanto,  o medicamento possui efeitos colaterais bastante severos. Difícil decisão. Mas, optei por conviver com os sintomas se puder preservar, pela maior quantidade de tempo possível, a minha independência física, se eu puder, ao menos, ir e vir quando eu bem entender sem a necessidade da ajuda de outras pessoas, se eu puder abrir os olhos ao acordar e enxergar tudo ao meu redor, se as minhas mãos puderem continuar a exprimir, por meio da arte, os meus anseios, minhas alegrias, minhas dores, minhas inquietações.



Um beijo silencioso!

 

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