terça-feira, 2 de outubro de 2012

Um retrato de mim


Bete Tezine. Autorretrato
Bordado sobre fotografia, 35 x 45 cm, 2012.



Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem esses olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- em que espelho ficou perdida
a minha face?

 (Retrato - Cecília Meireles)







É inerente à personalidade humana o desejo de ser lembrada pelas gerações futuras. Muitos veem nos filhos a continuidade de suas existências, outros acreditam que seus atos é que serão motivos de lembranças, porém, para a grande maioria, serão as marcas de sua identidade física que farão com que sua imagem seja perpetuada.
Diante disso, torna-se compreensível o fascínio do Homem pelo retrato, pois, nada melhor que sua imagem estampada em uma tela ou em uma fotografia, sendo apreciada por seus descendentes ou mesmo por desconhecidos, para dar-lhe a ilusão da imortalidade.
 Assim ocorre desde os tempos mais remotos, uma vez que o homem pré-histórico já sentia a necessidade de deixar a marca de sua passagem pela vida nas paredes das cavernas. Depois, os que tinham condições financeiras contrataram artistas para perpetuarem suas imagens, reproduzindo seus traços físicos em retratos pictóricos.
Porém, foi com a invenção da fotografia que o retrato se tornou verdadeiramente popular, uma vez que seus custos, comparados ao de uma pintura, eram muito mais acessíveis às camadas menos abastadas da população. Todos queriam ter um retrato fotográfico de si próprio, mesmo que, no início, posar para uma fotografia fosse uma verdadeira seção de tortura devido ao longo tempo de exposição à luz, tanto que, nos primeiros retratos, os modelos, quase sempre, aparecem de olhos fechados e expressão de suplício.
E essa necessidade de perpetuação da imagem também é uma constante entre os artistas, uma vez que, quase todos, em algum momento de seus processos criativos, se autorretrataram, usando, para tanto, os recursos mais diversos: pintura, fotografia, desenho...
Todavia, não obstante esse desejo de eternização da própria imagem pelo Homem, eu não tenho lembrança de algum momento em que eu tenha sido retratada sem resistência, motivo pelo qual, nas fotografias impostas por alguma obrigação social, eu sempre apareço com expressão de suplício, assim como as imagens dos primeiros retratados fotograficamente.
Entretanto, existem certas circunstâncias que nos obrigam a rever convicções e deficiências, como forma de superação. Para mim, foi a esclerose múltipla que, ao se manifestar em minha vida, fez-me refletir acerca das dificuldades emocionais que me acompanham há muito tempo.
Desse modo, ao optar por produzir um autorretrato fotográfico como obra final para conclusão da Habilitação em Artes Plásticas, muito mais do que superar a repulsa por ser fotografada, busquei encontrar os motivos que me levaram a ela.
Assim,  fazendo um reflexão íntima, descobri que o que me levava à aversão por estar diante da câmera fotográfica, não era o ato fotográfico em si, mas, o resultado dele, uma vez que eu não me autorreconhecia nas imagens estampadas nas fotografias e, assim como na fala do personagem de Luigi Pirandello, se eu não sou como acho que sou, o que os outros enxergam em mim? Os outros que não sabem dos meus pensamentos, não sabem do meu interior e só enxergam minha aparência física, como acham que sou? Será que acham que as minhas ideias são como o meu rosto redondo e as minhas pálpebras inchadas?
Todos esses questionamentos emergiram ao perceber que, na verdade, a imagem que tenho de mim não é a mesma que vejo nos retratos, talvez porque eu não consiga ser espontânea diante da câmera por medo de ver o resultado da pose ou, talvez, porque a imagem fotográfica seja o resultado do olhar de outra pessoa durante o ato fotográfico.
Diante disso, percebi que o primeiro passo para a superação da repulsa por ser fotografada, seria conseguir uma imagem em que eu me autorreconhecesse. Então, parti em busca de retratos que, além de permitirem o autorreconhecimento, deixassem à mostra minha imagem física, sem ocultar os traços dos quais não gosto: o rosto redondo e as pálpebras inchadas, por exemplo.
Foi assim que, analisando retratos meus, descobri uma série com a qual eu me autoidentifiquei. Eram retratos que, embora não fossem tirados por mim, eram verdadeiros autorretratos, uma vez que eu conseguia enxergar-me naquelas imagens.
Depois da escolha, analisando a minha relação com o bordado, descobri que ele estava presente em minha vida por tanto tempo que acabou se tornando, também, um retrato de mim. Sendo assim, nada melhor que ele para interferir sobre as fotografias para que elas se tornassem, inquestionavelmente, autorretratos.
Por fim, não sei dizer ainda se, com a conclusão do trabalho, eu conseguirei superar a dificuldade de ser fotografada, não sei se posarei, espontaneamente, para a câmera fotográfica, porém, uma coisa é certa, a partir do momento em que identificamos as causas das nossas deficiências, torna-se muito mais fácil lidar com elas e, daí para a verdadeira superação, o caminho a ser percorrido fica menos íngreme e tortuoso.

Um beijo carinhoso!

P.S.: O texto acima faz parte do meu Trabalho de Conclusão de Curso - TCC, para obtenção do título de licenciatura em Artes Plásticas.




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