segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Ensino porque amo...






O essencial, com efeito, na educação, não é a doutrina ensinada, é o despertar.

Ernest Renan







Uma das muitas convicções que carrego comigo é acreditar que só conseguimos ensinar, de verdade, aquilo que amamos. Não basta querer ensinar, é preciso ir muito além disso. É preciso que sejamos apaixonados pelas lições que pretendemos que sejam assimiladas por aqueles que nos são confiados, seja pela vida, seja pela sociedade.
Ensinar é uma arte! Uma arte que necessita, em doses máximas, de muita sensibilidade, paciência, carinho e amor. Amor por quem aprende, amor pelo que se ensina.
Hoje, no dia em que se comemora o dia dos professores, sinto ainda mais pungente em mim, a falta que me tem feito estar dentro das salas de aulas, a falta de poder contagiar meus alunos com minha paixão pela arte. Essa foi mais uma das coisas que a Esclerose Múltipla, ao menos transitoriamente, afastou de mim. Ela me arrebatou de dentro das salas de aulas quando se manifestou em minha vida.
Assim, tomada pela saudade, comecei a relembrar de alguns resultados positivos que obtive com alguns dos meus alunos. E, a falta que sinto deles, cresceu ainda mais.
Não me esqueço do primeiro dia em que entrei na sala da 7ª D. Me apresentei e, quando lhes disse que eu seira sua professora de artes, ouvi uma resposta coletiva dizendo que detestavam arte. Aquilo doeu em mim, pois, até aquele momento, na minha total inexperiência letiva, jamais concebi a hipótese de que alguém pudesse não gostar de artes. Isso me entristeceu muito mais do que ousei admitir para mim mesma. Porém, ao invés de me deixar abater, movida pelo meu extremo amor pelo objeto das minhas lições, procurei transmitir a eles a minha intensa paixão pela arte e, por incrível que pareça, acabei por contagiar a maior parte deles. 
Outro aluno de quem não me esqueço, já de uma outra turma, é o Marco Aurélio. Um menino muito tímido e que se recusava, categoricamente, a realizar qualquer uma das propostas que eu passava em aula. Ao ser questionado acerca do por quê, ele sempre me dava a mesma resposta: não sei desenhar professora. Diante disso, ao invés de insistir com ele (e com outros que estavam em igual situação), optei por lhe descortinar o mundo das artes. Planejei aulas em que mostrei aos meus alunos todas as possibilidades de manifestação artística. Eles pouco produziram, porém, entenderam que a arte vai muito além da pintura e do desenho. Realmente, posso dizer, que foram despertados para ela e, daí, para a verdadeira paixão, o espaço ficou muito mais estreito.
Voltando ao Marco Aurélio, em uma das últimas aulas que ministrei a ele, qual não foi a minha surpresa quando ele me entregou a proposta e, quando olhei, a folha não estava em branco, muito pelo contrário, pela primeira vez, depois de meses, ele havia realizado um trabalho. Exultei! Parabenizei-o! Fiz mesmo festa para ele! E quando indaguei-lhe acerca do que havia mudado, recebi como resposta: eu aprendi que não é apenas quem sabe desenhar que pode fazer arte, professora. foi a senhora quem me ensinou isso, muito obrigado.
Nessa altura, já dá pra imaginar o tamanho da emoção que senti. Ela, realmente, não coube em mim. Naquele momento, eu tive plena convicção de que havia cumprido meu papel como professora de artes daquela turma, pois, se em meio aos 40 alunos da sala, eu havia conseguido quebrar a resistência inicial e fazer com que a arte pudesse despontar na vida de um único aluno que fosse, havia conseguido transmitir o meu amor pela matéria que lecionei. Isso não tem preço, não tem mesmo.
Para terminar, deixo uma crônica de Rubem Alves que, com muito mais propriedade que eu, já falou sobre o amor por ensinar e aprender por amar, vale muito a pena ler!

Aprendo porque amo

Rubem Alves

Recordo a Adélia Prado: "Não quero faca nem queijo; quero é fome". Se estou com fome e gosto de queijo, eu como queijo... Mas e se eu não gostar de queijo? Procuro outra coisa de que goste: banana, pão com manteiga, chocolate... Mas as coisas mudam de figura se minha namorada for mineira, gostar de queijo e for da opinião que gostar de queijo é uma questão de caráter. Aí, por amor à minha namorada, eu trato de aprender a gostar de queijo.
Lembro-me do filme "Assédio", de Bernardo Bertolucci. A história se passa numa cidade do norte da Itália ou da Suíça. Um pianista vivia sozinho numa casa imensa que havia recebido como herança. Ele não conseguia cuidar da casa sozinho nem tinha dinheiro para pagar uma faxineira. Aí ele propôs uma troca: ofereceu moradia para quem se dispusesse a fazer os serviços de limpeza.
Apresentou-se uma jovem negra, recém-vinda da África, estudante de medicina. Linda! A jovem fazia medicina ocidental com a cabeça, mas o seu coração estava na música da sua terra, os atabaques, o ritmo, a dança. Enquanto varria e limpava, sofria ouvindo o pianista tocando uma música horrível: Bach, Brahms, Debussy... Aconteceu que o pianista se apaixonou por ela. Mas ela não quis saber de namoro. Achou que se tratava de assédio sexual e despachou o pianista falando sobre o horror da música que ele tocava.
O pobre pianista, humilhado, recolheu-se à sua desilusão, mas uma grande transformação aconteceu: ele começou a frequentar os lugares onde se tocava música africana. Até que aquela música diferente entrou no seu corpo e deslizou para os seus dedos. De repente, a jovem de vassoura na mão começou a ouvir uma música diferente, música que mexia com o seu corpo e suas memórias... E foi assim que se iniciou uma estória de amor atravessado: ele, por causa do seu amor pela jovem, aprendendo a amar uma música de que nunca gostara, e a jovem, por causa do seu amor pela música africana, aprendendo a amar o pianista que não amara. Sabedoria da psicanálise: frequentemente, a gente aprende a gostar de queijo por meio do amor pela namorada que gosta de queijo...
Isso me remete a uma inesquecível experiência infantil. Eu estava no primeiro ano do grupo. A professora era a dona Clotilde. Ela fazia o seguinte: sentava-se numa cadeira bem no meio da sala, num lugar onde todos a viam —acho que fazia de propósito, por maldade—, desabotoava a blusa até o estômago, enfiava a mão dentro dela e puxava para fora um seio lindo, liso, branco, aquele mamilo atrevido... E nós, meninos, de boca aberta... Mas isso durava não mais que cinco segundos, porque ela logo pegava o nenezinho e o punha para mamar. E lá ficávamos nós, sentindo coisas estranhas que não entendíamos: o corpo sabe coisas que a cabeça não sabe.
Terminada a aula, os meninos faziam fila junto à dona Clotilde, pedindo para carregar sua pasta. Quem recebia a pasta era um felizardo, invejado. Como diz o velho ditado, "quem não tem seio carrega pasta"... Mas tem mais: o pai da dona Clotilde era dono de um botequim onde se vendia um doce chamado "mata-fome", de que nunca gostei. Mas eu comprava um mata-fome e ia para casa comendo o mata-fome bem devagarzinho... Poeticamente, trata-se de uma metonímia: o "mata-fome" era o seio da dona Clotilde...
Ridendo dicere severum: rindo, dizer as coisas sérias... Pois rindo estou dizendo que frequentemente se aprende uma coisa de que não se gosta por se gostar da pessoa que a ensina. E isso porque —lição da psicanálise e da poesia— o amor faz a magia de ligar coisas separadas, até mesmo contraditórias. Pois a gente não guarda e agrada uma coisa que pertenceu à pessoa amada? Mas a "coisa" não é a pessoa amada! "É sim!", dizem poesia, psicanálise e magia: a "coisa" ficou contagiada com a aura da pessoa amada.
Minha avó guardava uns bichinhos que haviam pertencido a um filho que morrera. Guardo um peso de papel, de vidro, que pertenceu ao meu pai. E os apaixonados guardam uma peça de roupa da pessoa amada e a colocam sobre o travesseiro, ao dormir... Mesmo depois de ela ter morrido. É como se, por meio daquela "coisa" que não é a pessoa amada, fosse possível tocar e acariciar a pessoa amada, ausente.
Pois o mesmo mecanismo acontece na educação. Quando se admira um mestre, o coração dá ordens à inteligência para aprender as coisas que o mestre sabe. Saber o que ele sabe passa a ser uma forma de estar com ele. Aprendo porque amo, aprendo porque admiro. Sabendo o que ele sabe eu carrego a sua pasta, como o "mata-fome", faço amor com ele.
Lamento dizer isso: tive poucos mestres que admirasse. Lembro-me de um que admiro até hoje, embora já se tenham passado mais de 50 anos: Leônidas Sobrinho Porto. Professor de literatura, nunca nos atormentou com informações sobre nomes e escolas literárias. Ele sabia que não aprenderíamos. Mas quando ele se punha a falar, era como se estivesse possuído. Falava com tal paixão sobre as grandes obras literárias que era impossível não ser contagiado. Eu o admirava porque nele brilhava a beleza da literatura, "queijo" de que eu não gostava. Ele me fez amar a literatura.
A dona Clotilde nos dá a lição de pedagogia: quem deseja o seio, mas não pode prová-lo, realiza o seu amor poeticamente, por metonímia: carrega a pasta e come "mata-fome"...

Feliz dia dos Professores para todos nós que amamos o que ensinamos!

Um beijo repleto de amor....


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