sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O homem sem "temporâneo"


Ponto de ônibus do final do calçadão da Av. Oliveira Lima
 Centro - Santo André/SP
Em nosso último semestre do curso de Artes Plásticas, diante de uma proposta da disciplina Arte urbana, desenvolvemos uma intervenção urbana coletiva que foi realizada em um ponto de ônibus, no centro de Santo André/SP. Intervenção esta que consistiu na colocação de diversos relógios e no entrelaçamento de linhas coloridas na parte posterior do abrigo para passageiros no intuito de, com os relógios, buscar a materialização da falta de tempo dos passageiros e, com as linhas entrelaçadas, remeter aos emaranhados de pessoas que se formam dentro dos ônibus lotados. 


Montagem da intervenção  urbana



Visão da instalação finalizada














Como justificativa para a intervenção, nossa turma apresentou o seguinte texto:
[..]
Enquanto o tempo
Acelera e pede pressa
Eu me recuso faço hora
Vou na valsa
A vida é tão rara...
[...]
Cada vez mais veloz
A gente espera do mundo
E o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência...
Será que é tempo
Que lhe falta pra perceber?
Será que temos esse tempo
Pra perder?
E quem quer saber ?
A vida é tão rara
[..]
(Lenine, Paciência)
           
Nos dias atuais, é comum ouvirmos das pessoas que o tempo está passando mais rápido. Fala-se, constantemente, acerca da aceleração do tempo. De fato, se compararmos quanto tempo demorava para chegar o Natal, ou o nosso aniversário, quando tínhamos sete anos, com o tempo em que essas mesmas datas demoram para chegar nos dias de hoje, teremos, nitidamente, a impressão de que o tempo está, realmente, passando mais rápido. Mas será mesmo? Será que está havendo um encurtamento dos dias? Ou será que estamos imersos em tal número de atividades que as 24 horas do dia não são mais suficientes?
            Para Carlos Alberto de Farias:
Na realidade a aparente falta de tempo é uma percepção errônea do que acontece, pois temos os mesmo 31.536.000 de segundos por ano, tais como nossos ascendentes pré-históricos tinham.
O que mudou foi que o conhecimento aumentou, os chamamentos à nossa atenção aumentaram, as possibilidades de entretenimento aumentaram, as múltiplas opções, facilidades e possibilidades estão presentes em nossas decisões mais simples - veja, por exemplo, as possibilidades oferecidas na compra de um simples detergente lava-louça.
Todo este conjunto de possibilidades nos coloca imersos em um mundo que nos é impossível apreender em sua totalidade, podendo gerar também ansiedade pelo desejo de fruição deste conjunto inumerável de facilidades colocadas à nossa mão.
           
A bem da verdade, no mundo globalizado, cada vez mais as pessoas estão envoltas em uma rotina que envolve a execução de inúmeras atividades: trabalho, estudos, família, cursos, compras, médico, dentista, academia, reuniões... Enfim, é uma maratona a ser seguida, dia após dia, desencadeando estresse e impaciência com os atrasos, mesmo os mais ínfimos.     E o lugar onde essa impaciência se mostra com muito mais intensidade, sem dúvida nenhuma, é nos pontos de ônibus, uma vez que a espera pelo transporte público se traduz em verdadeira tortura para o Homem cujo tempo é tão escasso.
            Assim, se prestarmos atenção nos passageiros que esperam seus ônibus, veremos que eles, a cada fração de minuto, verificam as horas, expressando no rosto uma impaciência que cresce proporcionalmente ao número de consultas ao relógio.
            A população dos grandes centros cresce desordenadamente e a frota de ônibus urbanos não acompanha esse crescimento, o que, aliado aos infinitos congestionamentos de trânsito provocados pela falta de planejamento urbano e a expansão vertiginosa do número de veículos particulares nas ruas, estendem, ainda mais, o tempo de espera nos pontos de parada.   
Tudo isso faz com que os ônibus, principalmente nos horários de picos, além dos constantes atrasos, circulem com lotações muito acima da capacidade máxima de cada um. Os passageiros se apertam, dentro dos coletivos, na tentativa de não perderem ainda mais tempo à espera do próximo ônibus.
            Outro aspecto decorrente da falta de tempo que podemos observar nos pontos de parada de ônibus é a solidão, uma vez que o avanço da tecnologia torna o ser humano cada vez mais solitário, pois, se ela aproxima os que estão longe, acaba por afastar quem está próximo. Desse modo, ao observarmos, mais uma vez, as pessoas que aguardam a chegada dos transportes urbanos, nota-se que, raramente, uma fala com a outra. Não se fala com as pessoas que estão ao lado, porém, fala-se com o marido, ou com a mulher, ou com o filho, ou com o amigo, ou com a namorada, que estão a quilômetros de distância, mas não se fala com aquele que está ao lado, não se compartilha a angústia pelo atraso do ônibus que lhe fará, também, atrasar para um dos inúmeros compromissos do dia. Cada passageiro se fecha em sua própria concha, mergulhado em uma profunda solidão e na angústia por perder tempo à espera de um ônibus que não chega.
Mas, de acordo com  Ana Reis:
A falta de tempo é, muitas vezes, uma ilusão que nos esforçamos por manter. Para não termos que lidar com o medo de estar a desleixar uma parte importante da nossa vida.
E é esse medo que nos mantém dentro da nossa zona de conforto. Uma concha dura que nos isola de tudo, incluindo, de nós próprios.

 Referências:



FARIA, Carlos Alberto de. Culpa por falta de tempo? Disponível em: <http://www.merkatus.com.br/10_boletim/155.htm>.  Acesso: 21 mai. 2012, 16:00:35.

LENINE, Paciência. Disponível em: <http://letras.terra.com.br/lenine/47001/ >. Acesso: 21 mai. 2012, 17:35:15.

REIS, Ana. A ilusão da falta de tempo. Disponível em: <http://www.arevolucaodamente.com/a-ilusao-da-falta-de-tempo/>. Acesso: 21 mai. 2012, 16:14:17.


Obs.: Intervenção realizada no dia 26/5/2012 pelo 6º semestre da Habilitação em Artes Plásticas, da FAINC. Alunos: Alexandre Barasino – Alíria Barbosa – Diana Miron – Bete Tezine – Letícia Barrionuevo – Ligia Mara Rodrigues – Rosalda Rolim – Rosana Rossi – Tânia Turcato

Um beijo grande!

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

30 de agosto: dia nacional de conscientização sobre a Esclerose Múltipla

Bete Tezine, Comunicação falha, 2012. Ponta seca sobre fotografia, 20 x 30 cm.

Hoje é o Dia Nacional de Conscientização sobre a Esclerose Múltipla  e, no país inteiro, estão ocorrendo eventos voltados para a divulgação da enfermidade e suas implicações. 

Apesar do que muitos pensam, a Esclerose Múltipla não é uma doença que afeta a memória e atinge pessoas idosas (basta lembrar que nós, portadores, quando dizemos a alguém que temos Esclerose Múltipla, frequentemente ouvimos: nossa! Tão jovem e já esclerosado!),  mas, muito pelo contrário, ela é uma enfermidade que atinge adultos jovens entre os 20 e os 50 anos de idade e as mulheres são as mais afetadas, na proporção de 2  para cada homem. 

A esclerose múltipla compromete o sistema nervoso central (SNC) que compreende o cérebro, cerebelo, tronco encefálico e medula espinhal e é caracterizada por lesões à mielina que envolve e isola as fibras nervosas, prejudicando a neurotransmissão. A desmielinização interfere na transmissão do impulso nervoso, diminuindo a velocidade de condução dos impulsos o que produz diversos sintomas.

Os sintomas da doença dependem do local onde ocorreu a lesão, sendo os mais comuns: a perda da visão ou visão dupla, formigamentos, tremores, fadiga, redução da força, dificuldade na fala, urgência ou incontinência urinária, transtornos cognitivos e emocionais. Estes sintomas podem ser leves, moderados ou intensos e surgem de maneira imprevisível, podendo evoluir em surtos ou de maneira lenta e progressiva. Isso pode ser visualizado de forma interessante no vídeo abaixo:




Ainda não há cura conhecida para a Esclerose Múltipla (mas espero que ela não tarde) e os tratamentos  disponíveis buscam estabilizar e interromper a atividade inflamatória e os surtos ao longo dos anos.

Muito embora seja uma doença antiga e que acomete milhares de pessoas em todo o mundo, seu diagnóstico continua sendo bastante complexo e, como muitas vezes os sintomas podem ser brandos ou pouco perceptíveis, o paciente acaba por não procurar ajuda médica. Em alguns casos, a Esclerose Múltipla pode ser confundida com outras doenças, o que acaba por dificultar o diagnóstico. 

Por tudo isso, é importante a conscientização da população em relação aos seus sintomas, pois, só assim, haverá a desmistificação da enfermidade.


Um beijo carinhoso.


P.S.: O trabalho que aparece no início da postagem é a imagem que tenho do meu sistema nervoso central acometido pela Esclerose Múltipla. Não está muito visível na imagem, mas, as palavras que estão escritas sobre a fotografia são: E a comunicação falha E a comunicação falha E a comunicação falha E a comunicação falha E a comunicação falha...............


quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Decepções




"Muitas vezes as pessoas que mais nos decepcionam são as que mais amamos. Isso porque as julgamos perfeitas e às vezes esquecemos que são humanas."
 (Autor desconhecido)




Há tempos venho sentindo-me profundamente decepcionada com o ser humano. Em especial, com algumas pessoas por quem sempre tive verdadeiro carinho. Dói muito quando pessoas que nos são importantes simplesmente nos agridem com indiferença, comentários maldosos, ingratidão, intolerância...
E assim, imersa nessa onda de desapontamentos,  deparei-me com as belíssimas palavras de Shakespeare que nos faz ver que, com o tempo, aprendemos que nem tudo na vida pode ser como idealizamos, muito menos as pessoas. Eis o texto:


Depois de algum tempo você aprende a diferença, a sutil diferença entre dar a mão e acorrentar uma alma. E você aprende que amar não significa apoiar-se, e que companhia nem sempre significa segurança ou proximidade. E começa aprender que beijos não são contratos, tampouco promessas de amor eterno. Começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e olhos radiantes, com a graça de um adulto – e não com a tristeza de uma criança. E aprende a construir todas as suas estradas no hoje, pois o terreno do amanhã é incerto demais para os planos, ao passo que o futuro tem o costume de cair em meio ao vão.
Depois de um tempo você aprende que o sol pode queimar se ficarmos expostos a ele durante muito tempo. E aprende que não importa o quanto você se importe: algumas pessoas simplesmente não se importam… E aceita que não importa o quão boa seja uma pessoa, ela vai feri-lo de vez em quando e, por isto, você precisa estar sempre disposto a perdoá-la.
Aprende que falar pode aliviar dores emocionais. Descobre que se leva um certo tempo para construir confiança e apenas alguns segundos para destruí-la; e que você, em um instante, pode fazer coisas das quais se arrependerá para o resto da vida. Aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longas distâncias, e que, de fato, os bons e verdadeiros amigos foram a nossa própria família que nos permitiu conhecer. Aprende que não temos que mudar de amigos: se compreendermos que os amigos mudam (assim como você), perceberá que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa, ou até coisa alguma, tendo, assim mesmo, bons momentos juntos.
Descobre que as pessoas com quem você mais se importa na vida são tomadas de você muito cedo, ou muito depressa. Por isso, sempre devemos deixar as pessoas que verdadeiramente amamos com palavras brandas, amorosas, pois cada instante que passa carrega a possibilidade de ser a última vez que as veremos; aprende que as circunstâncias e os ambientes possuem influência sobre nós, mas somente nós somos responsáveis por nós mesmos; começa a compreender que não se deve comparar-se com os outros, mas com o melhor que se pode ser.
Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que se deseja tornar, e que o tempo é curto. Aprende que não importa o ponto onde já chegamos, mas para onde estamos, de fato, indo – mas, se você não sabe para onde está indo, qualquer lugar servirá.
Aprende que: ou você controla seus atos e temperamento, ou acabará escravo de si mesmo, pois eles acabarão por controlá-lo; e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade, pois não importa o quão delicada ou frágil seja uma situação, sempre existem dois lados a serem considerados, ou analisados.
Aprende que heróis são pessoas que foram suficientemente corajosas para fazer o que era necessário fazer, enfrentando as consequências de seus atos. Aprende que paciência requer muita persistência e prática. Descobre que, algumas vezes, a pessoa que você espera que o chute quando você cai, poderá ser uma das poucas que o ajudará a levantar-se. (…) Aprende que não importa em quantos pedaços o seu coração foi partido: simplesmente o mundo não irá parar para que você possa consertá-lo. Aprende que o tempo não é algo que possa voltar atrás. Portanto, plante você mesmo seu jardim e decore sua alma – ao invés de esperar eternamente que alguém lhe traga flores. E você aprende que, realmente, tudo pode suportar; que realmente é forte e que pode ir muito mais longe – mesmo após ter pensado não ser capaz. E que realmente a vida tem seu valor, e, você, o seu próprio e inquestionável valor perante a vida.

Willian Shakespeare


Um beijo enorme!

A arte de escutar




“Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.“
(Alberto Caeiro) 









Certa vez, li em uma revista um texto escrito por uma jornalista sobre saber ouvir e, depois daquele dia, não vou dizer que aprendi (estou me esforçando muito, juro que estou), mas tenho tentado por em prática suas palavras.
 Ela começa contando que após um dia exaustivo, repleto de percalços, ela chega em casa a ponto de explodir, literalmente. Toca o telefone, ela atende e ouve a voz da sogra. Nesse momento ela pensa que aquela seria a última pessoa com quem gostaria de falar, porém, por falta de outro ouvinte, ela descarrega nos ouvidos da sogra todo o seu dia. Do outro lado, silêncio. Ela não é interrompida nenhuma vez sequer, a ponto de achar que a sogra havia deligado. No entanto, após terminar sua ladainha de lamentações, ela ouve, simplesmente, as seguintes palavras: tente se acalmar, pois amanhã será um novo dia e eu te ligo para conversarmos. A sogra desliga o telefone sem dizer o por quê de ter ligado. A jornalista finaliza sua narrativa dizendo que às vezes queremos apenas alguém que nos escute e que respeite nossas dores e, naquele dia, ela encontrou esse respeito em quem ela menos esperava.
Dizem que o maior problema é o nosso, assim, temos a tendência de quando alguém nos fala das suas dores e frustrações, tentar minimizar o sofrimento alheio expondo as nossas angústias, demonstrando, com isso, uma imensa falta de respeito com aquele que apenas queria ser ouvido naquele instante.
Isso eu tenho sentido na pele, agora mais do que nunca, pois, quando tento compartilhar com alguém as dores físicas e emocionais causadas pela Esclerose Múltipla, são bem poucos os que me ouvem simplesmente. Poucos têm entendido que quero apenas ser ouvida.
Eu poderia escrever longamente sobre o assunto, no entanto, Rubem Alves já o fez com tal propriedade, que não ouso acrescentar nada além, apenas deixo suas palavras para reflexão:


Escutatório

(Rubem Alves)


 Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.
Escutar é complicado e sutil. Diz o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma“. Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Aí a gente que não é cego abre os olhos. Diante de nós, fora da cabeça, nos campos e matas, estão as árvores e as flores. Ver é colocar dentro da cabeça aquilo que existe fora. O cego não vê porque as janelas dele estão fechadas. O que está fora não consegue entrar. A gente não é cego. As árvores e as flores entram. Mas - coitadinhas delas - entram e caem num mar de idéias. São misturadas nas palavras da filosofia que mora em nós. Perdem a sua simplicidade de existir. Ficam outras coisas. Então, o que vemos não são as árvores e as flores. Para se ver e preciso que a cabeça esteja vazia.
Faz muito tempo, nunca me esqueci. Eu ia de ônibus. Atrás, duas mulheres conversavam. Uma delas contava para a amiga os seus sofrimentos. (Contou-me uma amiga, nordestina, que o jogo que as mulheres do Nordeste gostam de fazer quando conversam umas com as outras é comparar sofrimentos. Quanto maior o sofrimento, mais bonitas são a mulher e a sua vida. Conversar é a arte de produzir-se literariamente como mulher de sofrimentos. Acho que foi lá que a ópera foi inventada. A alma é uma literatura. É nisso que se baseia a psicanálise...) Voltando ao ônibus. Falavam de sofrimentos. Uma delas contava do marido hospitalizado, dos médicos, dos exames complicados, das injeções na veia - a enfermeira nunca acertava -, dos vômitos e das urinas. Era um relato comovente de dor. Até que o relato chegou ao fim, esperando, evidentemente, o aplauso, a admiração, uma palavra de acolhimento na alma da outra que, supostamente, ouvia. Mas o que a sofredora ouviu foi o seguinte: “Mas isso não é nada...“ A segunda iniciou, então, uma história de sofrimentos incomparavelmente mais terríveis e dignos de uma ópera que os sofrimentos da primeira.
Parafraseio o Alberto Caeiro: “Não é bastante ter ouvidos para se ouvir o que é dito. É preciso também que haja silêncio dentro da alma.“ Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor. No fundo somos todos iguais às duas mulheres do ônibus. Certo estava Lichtenberg - citado por Murilo Mendes: “Há quem não ouça até que lhe cortem as orelhas.“ Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...
Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos, estimulado pela revolução de 64. Pastor protestante (não “evangélico“), foi trabalhar num programa educacional da Igreja Presbiteriana USA, voltado para minorias. Contou-me de sua experiência com os índios. As reuniões são estranhas. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, como se estivessem orando. Não rezando. Reza é falatório para não ouvir. Orando. Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas. Também para se tocar piano é preciso não ter filosofia nenhuma). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito. Pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que julgava essenciais. Sendo dele, os pensamentos não são meus. São-me estranhos. Comida que é preciso digerir. Digerir leva tempo. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se falo logo a seguir são duas as possibilidades. Primeira: “Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava eu pensava nas coisas que eu iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado.“ Segunda: “Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou.“ Em ambos os casos estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: “Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou.“ E assim vai a reunião.
Há grupos religiosos cuja liturgia consiste de silêncio. Faz alguns anos passei uma semana num mosteiro na Suíça, Grand Champs. Eu e algumas outras pessoas ali estávamos para, juntos, escrever um livro. Era uma antiga fazenda. Velhas construções, não me esqueço da água no chafariz onde as pombas vinham beber. Havia uma disciplina de silêncio, não total, mas de uma fala mínima. O que me deu enorme prazer às refeições. Não tinha a obrigação de manter uma conversa com meus vizinhos de mesa. Podia comer pensando na comida. Também para comer é preciso não ter filosofia. Não ter obrigação de falar é uma felicidade. Mas logo fui informado de que parte da disciplina do mosteiro era participar da liturgia três vezes por dia: às 7 da manhã, ao meio-dia e às 6 da tarde. Estremeci de medo. Mas obedeci. O lugar sagrado era um velho celeiro, todo de madeira, teto muito alto. Escuro. Haviam aberto buracos na madeira, ali colocando vidros de várias cores. Era uma atmosfera de luz mortiça, iluminado por algumas velas sobre o altar, uma mesa simples com um ícone oriental de Cristo. Uns poucos bancos arranjados em “U“ definiam um amplo espaço vazio, no centro, onde quem quisesse podia se assentar numa almofada, sobre um tapete. Cheguei alguns minutos antes da hora marcada. Era um grande silêncio. Muito frio, nuvens escuras cobriam o céu e corriam, levadas por um vento impetuoso que descia dos Alpes. A força do vento era tanta que o velho celeiro torcia e rangia, como se fosse um navio de madeira num mar agitado. O vento batia nas macieiras nuas do pomar e o barulho era como o de ondas que se quebram. Estranhei. Os suíços são sempre pontuais. A liturgia não começava. E ninguém tomava providências. Todos continuavam do mesmo jeito, sem nada fazer. Ninguém que se levantasse para dizer: “Meus irmãos, vamos cantar o hino...“ Cinco minutos, dez, quinze. Só depois de vinte minutos é que eu, estúpido, percebi que tudo já se iniciara vinte minutos antes. As pessoas estavam lá para se alimentar de silêncio. E eu comecei a me alimentar de silêncio também. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir. Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. E música, melodia que não havia e que quando ouvida nos faz chorar. A música acontece no silêncio. É preciso que todos os ruídos cessem. No silêncio, abrem-se as portas de um mundo encantado que mora em nós - como no poema de Mallarmé, A catedral submersa, que Debussy musicou. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos. Me veio agora a idéia de que, talvez, essa seja a essência da experiência religiosa - quando ficamos mudos, sem fala. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto... 

Um grande beijo!


P.S.: No final de semana passada assisti a uma brilhante entrevista com Rubens Alves no Programa Dossiê, da Globo News. Para quem não viu, assista clicando aqui:  Rubem Alves . Vale a pena!

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Primavera tardia

Fig. 1. A primavera, Monet, 1886.
Recebi o diagnóstico de portadora de Esclerose Múltipla no dia 02 de fevereiro de 2012, após uma maratona de exames. Todavia, embora não pudesse dar-lhe um nome, nem delimitar seus contornos, eu já sentia sua presença ao meu lado há muito tempo.


Fig. 2. A primavera sempre virá
Bete Tezine, 2011.
Colagem sobre fotografia, 25 x 35 cm.








Hoje eu seu que ela me acompanhou, anonimamente, por muito tempo e, acreditem, não foi fácil carregá-la comigo sem saber quem ela era.
Todos os sintomas que ela me causava e que, por falta de um diagnóstico preciso, foram tratados isoladamente e equivocadamente,  muitas vezes me levaram a crer que eram criações da minha mente, o que,  somados a outros conflitos pessoais e familiares, desencadearam o período mais conturbado da minha vida.
Foi nesse momento que, relendo a obra A Primavera, de Monet (fig. 1), deixei vir a tona a minha primavera (fig. 2) e, como justificativa, escrevi o seguinte:



A primavera pressupõe um período de renovação, onde as árvores desfolhadas pelo frio do inverno se enchem de brotos e, botões desabrocharão, numa explosão de flores. É a estação da esperança.
No entanto, tenho vivido anos a espera de uma primavera que tem tardado demasiadamente. Sinto-me vivendo um inverno constante, em que as árvores continuam sem folhas, sem botões, sem perfume...
Mas, por mais longo que seja o inverno, um dia, por mais longínquo que esteja, a primavera sempre virá.


Esse foi o primeiro trabalho artístico que elaborei deixando que as minhas emoções fossem expressas. Espero que apreciem.

Um beijo enorme e até amanhã.




segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Jamais diga nunca

Sejam bem vindos à minha história  

            " ...Aprendi durante a minha existência que a estrada da vida é longa e as circunstâncias podem nos levar justamente ao que 'nunca' queríamos fazer!"
(Autor desconhecido) 

Quem me conhece sabe da minha relutância em expor-me na web. Até agora não participava de redes sociais e, escrever sobre minhas ideias em um blog estava totalmente fora de cogitação, tanto é que, durante a Pós-graduação em Arte Educação que cursei em 2011, como proposta da disciplina de Arte e Tecnologia, tínhamos de criar um blog e fazer postagens sobre as aulas. Vocês não podem imaginar o embate que travei com a professora sobre o fato de ser "obrigada" a tal tarefa. Felizmente a professora se foi e o substituto trouxe novas propostas.
Porém, chega um momento em nossas vidas que somos colocados frente-a-frente com nossas inseguranças, traumas, deficiências e convicções e, para mim, esse momento chegou na forma de uma doença degenerativa e sem cura - a Esclerose Múltipla (EM).
Ao ser diagnosticada como portadora, comecei a repensar muitos pontos de minha vida que pretendo rever e compartilhar com vocês, como forma de superação. 
Neste espaço não abordarei exclusivamente a EM, mas, como ela atrelou-se à minha vida, logicamente  ela estará presente em muitas das minhas postagens e, as emoções que ela me desperta, serão justificativas para muitos dos trabalhos artísticos que aqui vou expor.
Serão de extrema importância  os comentários e sugestões de temas para serem abordados.
Para terminar, deixo com vocês a primeira lição que a doença me trouxe: Jamais diga nunca.

Um beijo grande!