sábado, 19 de setembro de 2020

Agora tenho um diagnóstico, mas e daí?

https://g1.globo.com/pr/parana
Fonte da imagem: https://g1.globo.com/pr/parana

Fazia bastante tempo que não escrevia sobre minha vida com esclerose múltipla, aliás, bastante tempo que não a abordo publicamente, de nenhuma forma, exceto por uma live que participei, juntamente com a Dra. Liliana Russo, minha neurologista e de tantos outros esclerosados (não se ofendam com o termo esclerosado, é que não encontro outro adjetivo para as pessoas que possuem esclerose múltipla 😊) a convite do vereador Eduardo Leite, daqui de Santo André, na qual falamos um pouco sobre a patologia. 

Meu distanciamento da causa se deu, não por a EM ter me deixado livre de suas mazelas durante todo esse período, mas por ter necessitado me voltar para assuntos pessoais e olhar mais de perto para minha família.

As pessoas que acompanham minhas publicações, puderam perceber que vivenciei um período muito triste nos últimos meses e que acabou culminando com o falecimento da minha mãe, vitimada pela Covid-19 😢, 30 dias atrás.

Mas, retomando o tema ao qual me propus escrever hoje, vou falar um pouquinho sobre minha vida com esclerose múltipla (e também com fibromialgia, obesidade, hipertensão, epilepsia 😂. Haja doenças! 😱) e como tem sido carregar essa bagagem tão pesada.

Vivo com a EM praticamente durante toda minha vida, mas meu diagnóstico só chegou há 8 anos, trazendo com ele um imenso alívio por saber quem era a minha opositora e, também, bastante medo, pois até então não conhecia nada sobre a doença e, o pouco que tinha lido, tinha sido assustador (cadeira de rodas, invalidez etc etc etc...). Dois sentimentos tão antagônicos, mas que acredito fazerem parte do pós-diagnóstico de muitos que, como eu, perambularam por consultórios médicos em busca de uma resposta a tudo que sentiam por muito tempo, sem sucesso.

Agora eu tinha um diagnóstico, mas e daí? O que aconteceria a partir de então? O que ter recebido um CID pra rotular meus sintomas acarretaria pra mim? Como eu seguiria minha vida sabendo que iria viver para sempre acompanhada por uma mala sem alça feito a EM? Tantos questionamentos, tantos medos, tantas inseguranças e tão poucas respostas...

Saí do consultório médico com uma pilha de papéis: receitas para tratar os sintomas que não eram poucos (dor neuropática - nem sabia que as dores que eu sentia tinham esse nome, fadiga extrema - daquelas de te tirar literalmente de campo);  insônia; antiepilético (descobri no processo de diagnóstico da EM que tinha epilepsia); fibromialgia (também não sabia que as outras dores eram causadas por ela, aliás, nem sabia que tinha até então); receitas e relatório para retirada da medicação (Rebif) na farmácia de alto custo; antidepressivo e encaminhamentos para fisioterapia e psicoterapia; ah! também recebi relatório para solicitar o cartão DEFIS. 

Confesso que fiquei desalentada, mas de tudo, o que mais me assustou foi necessitar usar o Rebif para controle da vadia da EM (como eu a chamo, pois ela não passa de uma vadia, desclassificada, aproveitadora, oportunista, que se utiliza do nosso próprio organismo para nos atacar). Ficar dependente de 3 injeções semanais que, possivelmente,  me fariam "adoecer" no dia seguinte, foi o que mais me amedrontou, ouso dizer que até mais que o diagnóstico em si, ou melhor, diagnósticos, pois vieram uma gama de outras patologias na rabeira da vadia.

Assim que iniciei o uso do Rebif, pude constatar que meus temores não eram desmotivados, pois, literalmente, adoeci 3 vezes por semana. Foram tantos sintomas, febre, dores musculares, pseudogripes, congestão nasal, que os sintomas da EM ficaram secundários por muito tempo.

Em abril completei 8 anos de autoaplicação do Rebif e guardo todas as seringas. Com algumas produzi  trabalhos artísticos (mostrarei em outros posts) e com as demais que tenho acumuladas, penso em dar o mesmo destino em algum momento, mas por enquanto não tive a inspiração necessária. Continuo tendo os sintomas iniciais a cada aplicação, embora em alguns dias eles apareçam bem atenuados, em outros eles me deixam de molho, curtindo um dia difícil de passar.

Quanto aos meus questionamentos iniciais, devagar tenho aprendido que ter uma doença imprevisível é para pessoas fortes, que tenho de viver um dia por vez, que o remédio é amargo, mas sem ele seria pior, que a vida segue seu curso por mais que nós estejamos com o fôlego curto para acompanhá-la, que continuar sonhando é possível, embora necessitemos  ir delineando caminhos alternativos e nos adaptando diariamente para que a EM não dite as regras do jogo. 

Tenho muito a falar sobre como ando me sentindo, mas isso será tema de outras postagens para não cansar vocês, combinado?

Um beijo no coração! 💗

Bete Tezine




quinta-feira, 17 de setembro de 2020

O relógio não pode parar...


Minha mãe sempre usou relógio de pulso. E, não podia ser qualquer relógio. Ele precisava ser da marca Orient, automático e à prova d'água. Acredito que o único momento em que ela tirava o relógio era o do banho, pois de resto, não tirava pra nada, por isso dizia que precisava de um relógio muito resistente.

Seu penúltimo relógio quebrou e ela me pediu para ir com ela comprar um novo, isso há uns 5 anos, mais ou menos. Não foi uma tarefa fácil, pois os relógios Orient, automáticos e à prova d'água já não possuem muitos modelos disponíveis. Mas, depois de muita procura, encontramos um que correspondeu aos requisitos.

Ela sempre foi uma mulher incrivelmente ativa. O que lhe faltava em estatura, sobrava em garra, força, disposição, coragem e sabedoria. Era teimosa, sempre fez apenas o que queria fazer. Não temia dizer não quando era preciso. E assim foi até uns 3 anos atrás. 

Foi diagnosticada com alzheimer em 2014, bem no início dos primeiros sintomas e já iniciou tratamento. Nos 3 primeiros anos pós-diagnóstico, ela se manteve ativa, teimosa, mas com mudanças de comportamento. Teve várias fases, mas sua memória se mantinha intacta e assim foi até o fim.

Aos poucos, ela foi ficando quietinha, parou de sair sozinha, quase não interagia mais, porém sempre prestando atenção em tudo, falando mais nãos, passando a maior parte do tempo deitada, mas mantendo relativa independência e só fazendo o que tinha vontade e, nós, filhos, sempre respeitamos o que ela queria.

Esse desacelerar dela teve um efeito colateral: seu relógio de pulso Orient, automático e à prova d'água começou a atrasar bastante, uma vez que esse tipo de relógio "se dá corda" por meio do movimento do braço. Ela queria que eu o levasse à assistência técnica, mas expliquei a ela porque ele estava atrasando e lhe disse pra que o balançasse umas 2 vezes ao dia para que ele funcionasse corretamente. E assim ela fez, religiosamente, até o último dia 30 de maio de 2020, quando precisou ser hospitalizada para tratar uma pancreatite grave.

Ela ficou 17 dias nessa internação e seu relógio ficou comigo. Lhe prometi que não deixaria que ele parasse e passei a balançá-lo às 9h da manhã e às 9h da noite, diariamente. 

No dia 16 de junho ela teve alta do hospital. Estava bem da pancreatite, mas com sonda enteral, mais quieta ainda, recusando alimento pastoso pela boca (ela precisava fazer todas as refeições deste modo para que pudesse retirar a sonda), muito sonolenta, mas mesmo assim, voltou a balançar seu relógio.

Seu estado piorou, apresentou febre e, no dia 27 de junho, foi novamente hospitalizada, desta vez na UTI e com suspeita de Covid-19. Covid, como assim? A protegemos tanto, como foi que ela se contagiou? A opção mais plausível é que foi contaminada durante a primeira internação. Medo, angústia, tristeza, preocupação, tudo junto e misturado, permearam nossos sentimentos durante os 51 dias em que ela ficou isolada.

No início, ela respondeu bem ao tratamento, mas depois, vieram as intercorrências. Foram 3 intubações, 3 extubações, traqueostomia, falência renal, não aceitação da dieta pela sonda, entrou em cuidados paliativos parciais e, depois, em cuidados paliativos exclusivos quando seu cérebro parou de responder... Tudo isso só pudemos acompanhar por meio de 1 boletim diário que recebíamos dos médicos. Não a vimos mais até que no dia 17 de agosto, autorizaram, depois de muita insistência, que meus 2 irmãos a visitassem, acompanhados pela psicóloga e assistente social do hospital, por 15 minutos. 

Ela sempre teve um apego diferenciado pelo meu irmão mais novo, e ele por ela. Nunca ficaram longe um do outro e ela o tratava como uma criança ainda, apesar dele já ter 40 anos, ter casado e ter 2 filhos. No entanto, isso jamais foi motivo de ciúmes por parte de nós, seus outros 3 filhos, pelo contrário, sempre lidamos com isso com respeito e bom humor.

No dia 18 de agosto, como se apenas estivesse aguardando a visita do "seu Gilmar", pois ela o chamava de "meu Gilmar", minha mãe se desligou do mundo físico, exatamente às 21h, enquanto eu estava, em casa, balançando seu relógio.

A Covid-19 a venceu, teoricamente. Teoricamente porque minha mãe nunca foi mulher de obedecer ordens, então, prefiro acreditar que ela escolheu partir para não ter de conviver com as sequelas dessa doença cruel, injusta e desconhecida.

A última visão que eu tinha dela era do momento em que o motorista do SAMU a tirou do meu carro, no colo, e disse pra ela: "agora iremos cuidar da senhora". Depois disso, eu só a vi morta, quando precisei reconhecer seu corpo (ela já havia negativado a Covid-19, não transmitia mais). Ela estava serena, seus cabelos estavam compridos e com as raízes brancas, ela não gostava deles assim, dizia que o Gilmar queria que ela os tingisse sempre, porém, estavam bem hidratados (senti isso ao acariciar seus cabelos), penteados em um pequeno coque. Chorei e a enfermeira chorou junto comigo...

Velamos minha mãe por 3h e nos despedimos dela numa linda cerimônia. Ela foi cremada no dia seguinte e suas cinzas estão numa urna ornamentada por mim do jeito que ela sempre gostou de tudo na vida: com muito brilho. 

Seu relógio continua trabalhando, marcando pontualmente as horas, minutos, segundos, dias da semana e dias do mês, como ela sempre cuidou para que ele fizesse. Eu o balanço às 9h da manhã e as 9h da noite, diariamente.

O relógio não pode parar, não é minha mãe? Assim como a vida dos que ficaram não pode parar. Temos de seguir, mesmo com o coração aos pedaços e uma saudade infinita. O único conforto, neste momento, é saber que você não está mais ligada a aparelhos, travando uma batalha desigual e injusta contra a Covid-19. Você foi uma guerreira ímpar na batalha que lutou e o orgulho que já sentíamos de você se multiplicou ao infinito. Mãe, segue em paz ai do outro lado que você deixou seu rebanho pronto pra prosseguir, levando na bagagem seus ensinamentos e nos espelhando na sua força, embora jamais chegaremos a 1/100 do que você foi em vida. 

"O fardo pesado que levas, deságua na força que tens, teu lar é no reino divino, limpinho cheirando alecrim" (Dona Cila, Maria Gadú).

Bete Tezine


sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Descaminhos...



Fonte: Google imagens


De todos os caminhos e descaminhos que tomei, de todos os rumos e resumos que fiz, de todos os começos e recomeços aos quais me submeti, trago memórias que me fazem viajar no tempo e buscar entender o que me levou a essa solidão lancinante que perfura minh'alma.

Tantos sonhos sonhados e não vividos, tantas dores que não deixei doer mas que não as mediquei de forma a não se tornarem crônicas... Tantas dúvidas sem respostas, tantas melancolias batendo à porta, questionando o por quê de tantos por quês.

Quem sou eu? Quem eu fui desde a mais tenra idade e quem eu me tornei depois dos sopapos que levei vida afora? Quem eu desejei ser e quem desejaram que eu fosse? Indagações sem respostas...

Das dores que cortaram minha carne profundamente feito lâmina de navalha, das insônias que provocaram devaneios e anseios que jamais se materializaram, dos sorrisos efêmeros e dos choros copiosos que explodiram feito bombas em momentos de introspecção, eu trago memórias tênues, em flashes desfocados, que não são capazes de trazerem claridade aos meus dias de monotonia.

Vou e volto, entro e saio, mergulho e emerjo, caio e levanto, mas não me encontro...


Bete Tezine