quinta-feira, 17 de setembro de 2020

O relógio não pode parar...


Minha mãe sempre usou relógio de pulso. E, não podia ser qualquer relógio. Ele precisava ser da marca Orient, automático e à prova d'água. Acredito que o único momento em que ela tirava o relógio era o do banho, pois de resto, não tirava pra nada, por isso dizia que precisava de um relógio muito resistente.

Seu penúltimo relógio quebrou e ela me pediu para ir com ela comprar um novo, isso há uns 5 anos, mais ou menos. Não foi uma tarefa fácil, pois os relógios Orient, automáticos e à prova d'água já não possuem muitos modelos disponíveis. Mas, depois de muita procura, encontramos um que correspondeu aos requisitos.

Ela sempre foi uma mulher incrivelmente ativa. O que lhe faltava em estatura, sobrava em garra, força, disposição, coragem e sabedoria. Era teimosa, sempre fez apenas o que queria fazer. Não temia dizer não quando era preciso. E assim foi até uns 3 anos atrás. 

Foi diagnosticada com alzheimer em 2014, bem no início dos primeiros sintomas e já iniciou tratamento. Nos 3 primeiros anos pós-diagnóstico, ela se manteve ativa, teimosa, mas com mudanças de comportamento. Teve várias fases, mas sua memória se mantinha intacta e assim foi até o fim.

Aos poucos, ela foi ficando quietinha, parou de sair sozinha, quase não interagia mais, porém sempre prestando atenção em tudo, falando mais nãos, passando a maior parte do tempo deitada, mas mantendo relativa independência e só fazendo o que tinha vontade e, nós, filhos, sempre respeitamos o que ela queria.

Esse desacelerar dela teve um efeito colateral: seu relógio de pulso Orient, automático e à prova d'água começou a atrasar bastante, uma vez que esse tipo de relógio "se dá corda" por meio do movimento do braço. Ela queria que eu o levasse à assistência técnica, mas expliquei a ela porque ele estava atrasando e lhe disse pra que o balançasse umas 2 vezes ao dia para que ele funcionasse corretamente. E assim ela fez, religiosamente, até o último dia 30 de maio de 2020, quando precisou ser hospitalizada para tratar uma pancreatite grave.

Ela ficou 17 dias nessa internação e seu relógio ficou comigo. Lhe prometi que não deixaria que ele parasse e passei a balançá-lo às 9h da manhã e às 9h da noite, diariamente. 

No dia 16 de junho ela teve alta do hospital. Estava bem da pancreatite, mas com sonda enteral, mais quieta ainda, recusando alimento pastoso pela boca (ela precisava fazer todas as refeições deste modo para que pudesse retirar a sonda), muito sonolenta, mas mesmo assim, voltou a balançar seu relógio.

Seu estado piorou, apresentou febre e, no dia 27 de junho, foi novamente hospitalizada, desta vez na UTI e com suspeita de Covid-19. Covid, como assim? A protegemos tanto, como foi que ela se contagiou? A opção mais plausível é que foi contaminada durante a primeira internação. Medo, angústia, tristeza, preocupação, tudo junto e misturado, permearam nossos sentimentos durante os 51 dias em que ela ficou isolada.

No início, ela respondeu bem ao tratamento, mas depois, vieram as intercorrências. Foram 3 intubações, 3 extubações, traqueostomia, falência renal, não aceitação da dieta pela sonda, entrou em cuidados paliativos parciais e, depois, em cuidados paliativos exclusivos quando seu cérebro parou de responder... Tudo isso só pudemos acompanhar por meio de 1 boletim diário que recebíamos dos médicos. Não a vimos mais até que no dia 17 de agosto, autorizaram, depois de muita insistência, que meus 2 irmãos a visitassem, acompanhados pela psicóloga e assistente social do hospital, por 15 minutos. 

Ela sempre teve um apego diferenciado pelo meu irmão mais novo, e ele por ela. Nunca ficaram longe um do outro e ela o tratava como uma criança ainda, apesar dele já ter 40 anos, ter casado e ter 2 filhos. No entanto, isso jamais foi motivo de ciúmes por parte de nós, seus outros 3 filhos, pelo contrário, sempre lidamos com isso com respeito e bom humor.

No dia 18 de agosto, como se apenas estivesse aguardando a visita do "seu Gilmar", pois ela o chamava de "meu Gilmar", minha mãe se desligou do mundo físico, exatamente às 21h, enquanto eu estava, em casa, balançando seu relógio.

A Covid-19 a venceu, teoricamente. Teoricamente porque minha mãe nunca foi mulher de obedecer ordens, então, prefiro acreditar que ela escolheu partir para não ter de conviver com as sequelas dessa doença cruel, injusta e desconhecida.

A última visão que eu tinha dela era do momento em que o motorista do SAMU a tirou do meu carro, no colo, e disse pra ela: "agora iremos cuidar da senhora". Depois disso, eu só a vi morta, quando precisei reconhecer seu corpo (ela já havia negativado a Covid-19, não transmitia mais). Ela estava serena, seus cabelos estavam compridos e com as raízes brancas, ela não gostava deles assim, dizia que o Gilmar queria que ela os tingisse sempre, porém, estavam bem hidratados (senti isso ao acariciar seus cabelos), penteados em um pequeno coque. Chorei e a enfermeira chorou junto comigo...

Velamos minha mãe por 3h e nos despedimos dela numa linda cerimônia. Ela foi cremada no dia seguinte e suas cinzas estão numa urna ornamentada por mim do jeito que ela sempre gostou de tudo na vida: com muito brilho. 

Seu relógio continua trabalhando, marcando pontualmente as horas, minutos, segundos, dias da semana e dias do mês, como ela sempre cuidou para que ele fizesse. Eu o balanço às 9h da manhã e as 9h da noite, diariamente.

O relógio não pode parar, não é minha mãe? Assim como a vida dos que ficaram não pode parar. Temos de seguir, mesmo com o coração aos pedaços e uma saudade infinita. O único conforto, neste momento, é saber que você não está mais ligada a aparelhos, travando uma batalha desigual e injusta contra a Covid-19. Você foi uma guerreira ímpar na batalha que lutou e o orgulho que já sentíamos de você se multiplicou ao infinito. Mãe, segue em paz ai do outro lado que você deixou seu rebanho pronto pra prosseguir, levando na bagagem seus ensinamentos e nos espelhando na sua força, embora jamais chegaremos a 1/100 do que você foi em vida. 

"O fardo pesado que levas, deságua na força que tens, teu lar é no reino divino, limpinho cheirando alecrim" (Dona Cila, Maria Gadú).

Bete Tezine


9 comentários:

  1. Muito triste Beth,ontem fez 1 ano que minha mãe se foi, é uma dor imensurável, força pra vocês, grande abraço.

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  2. O relógio não pode parar, não é minha mãe? Assim como a vida dos que ficaram não pode parar. Temos de seguir, mesmo com o coração aos pedaços e uma SAUDADE INFINITA.
    FICA E PAZ

    DONA CILA

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  3. Mãe, estou aqui em lágrimas lendo sobre a senhora. Como foi maravilhoso ter recebido a honra de ter tido a senhora como mãe. Me lembro de voce no auge da sua agitação, me achava mole, rsrs. Mãe, a saudade é dilacerante, mas saber que a senhora decidiu a hora de ir, é o que me conforta. Ficam as lembranças que serao eternas.

    Te amo!!!!

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  4. O relógio não pode parar, não é minha mãe? Assim como a vida dos que ficaram não pode parar.Temos que seguir, mesmo com o coração aos pedaços e uma SAUDADE INFINITA.
    Fica em Paz

    Dona CILA

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  5. Uma mulher de fibra...que legado lindo ela deixou! Força para vocês todos!����

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  6. A lembrança que guardo dela é que sempre estava impecávelmente vestida e muito cheirosa. E me lembro dos almoços de domingo, do frango com quiabo. Certeza que ela está em um excelente lugar na casa do Pai 🙏🏻 ❤️

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  7. É a história de uma guerreira, que deixa o seu exército amparado de garra, otimismo, fortes como ela sempre foi....

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  8. Me arrepiei todinha fazendo a leitura, me lembrei quando minha avó faleceu há cinco anos atrás e eu ouvia inúmeras vezes está música de Maria Gadu. A dor é muito grande, mas com o tempo, com a ajuda de Deus e talvez até delabqur já partiu, o coração vai ficando cada vez mais em paz e aqui do outro lado você consegue seguir sua caminhada com tranquilidade. Força!

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