terça-feira, 24 de setembro de 2019

Enquanto você se lembrar de mim...


Minha mãe
Fotografia: Paula

Oi mãe, estou envelhecendo e assim como você venho disfarçando meus cabelos brancos, mas meu peito fica apertado por saber que você não se importa mais com a cor das suas madeixas. Não que assumir os grisalhos seja motivo de demérito, longe disso, mas me entristeço por não ser algo natural em você, mas consequência do alzheimer que dia a dia vem tirando a sua vaidade.
Ei mãe, eu também já não me deslumbro com muitas coisas mais, já passei de meio século de existência e nesta fase da vida poucas coisas têm merecido minha real atenção, assim como você tem feito. Porém, um nó na garganta me sufoca por saber que o seu desprendimento não é apenas por  já ter vivido 3/4 de século, mas por estar alheia às preocupações existenciais em decorrência do alzheimer, esse tirano que pouco a pouco vai lhe deixando alheia à realidade.
Oi mãe, o que você cantarola, cadenciadamente e insistentemente, minuto após minuto? Que canção é essa minha mãe? Foi uma canção com a qual foi ninada? Ou que ninou cada um de seus filhos ou seu irmão caçula de quem foi babá quando ainda era apenas uma criança também? Embora o que você murmure seja de extrema tranquilidade, meu coração se aperta por saber que você não tem controle sobre a melodia que sai da sua boca, ela é imposta pelo alzheimer que vai devagar, mas ininterruptamente, avançando sobre sua mente.
Ei mãe, pra onde foi a preocupação em estar sempre bem vestida, com suas roupas coloridas, a meia de seda, o sapato lustroso, o colar no pescoço e o brinco na orelha? Hoje sua vestimenta rotineira são as camisolas de malha seja qual foi a hora do dia. Seus vestidos estampados, bordados e com barras de guipir estão guardados à espera dos bailes da terceira idade nos quais você rodopiava com uma energia que eu sempre invejei. Ah alzheimer, deixa ela dançar novamente aos domingos à tarde, isso lhe fazia tão bem.
Oi mãe, que saudades da sua comida. Lembra como eu tentei reproduzir seu frango com quiabo que tantas vezes você me ensinou, mas que nunca ficou nem de longe parecido com o seu? Pois é mãe, só de lembrar do cheiro que exalava das suas panelas no fogão minha boca enche d´água. Alzheimer, por que você tirou de mim o prazer de me sentir aquecida física e emocionalmente pela comida da minha mãe?
Sabe mãe, sua neurologista nos disse que esta fase é difícil pra nós, seus filhos, mas que você está em paz e eu acredito que sim, que a paz te alcançou em plenitude, mas egoisticamente, talvez eu preferisse você inquieta, implicante, mas transbordando energia. Lágrimas rolam pela minha face quando me dou conta que a paz que você vive tem um preço que nenhum ser humano deveria ter de pagar: o risco de esquecer quem você é e, o mais difícil pra mim, o risco de você esquecer quem eu sou.
Eu tento mãe, juro que tento muito não pensar por quanto tempo ainda você irá chamar de Ilza, ou de Vilma, ou de uma junção do meu nome com o dela,  Vilza (rsrs). Você sempre trocou nossos nomes e a gente apenas ria muito disso, mas hoje torcemos para que você continue confundindo os nomes indefinidamente, porque não sei se eu, no meu egoísmo filial, vou suportar olhar pra você e perceber que fui apagada das suas memórias por esse impiedoso alzheimer. Mas mãe, eu te prometo que se isso acontecer eu farei de tudo pra que você saiba que foi a mãe mais amada do mundo, mesmo que você não se lembre mais que nos educou para sermos pessoas de bem.
Mãe, você é uma fortaleza, nunca sucumbiu às agruras da vida, sempre foi meu exemplo de mulher que lutou incontáveis batalhas sem jamais ter perdido uma luta, mesmo quando o opositor parecia indestrutível. 
Ei mãe, eu te amo...


Bete Tezine


terça-feira, 3 de setembro de 2019

Estou de volta...

Fonte: Google imagens


Estive ausente aqui do blog por um longo período durante o  qual me dediquei praticamente com exclusividade à direção da ABCEM - Associação de pacientes com Esclerose Múltipla do Grande ABC e região. Participar da fundação da instituição e estar à frente dos projetos por ela desenvolvidos foi algo extremamente gratificante, pois levamos informações sobre a patologia a um grande número de pessoas, desde pacientes até estudantes e profissionais da saúde.

No entanto, esse foi um ciclo da minha vida que se encerrou por motivos que foram muito ponderados e que finalizei com enorme aperto no coração, mas de cabeça erguida por saber que dei o meu melhor enquanto a associação existiu.

Agora, muito mais madura e com uma bagagem mais sólida sobre experiências de vida, retomo o compartilhamento das minhas escleroses e espero que possa voltar a inspirar pessoas com meus relatos e devaneios.

Um beijo no coração...

Bete Tezine

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Quando eu necessito me perdoar...



Nem sempre a vida é boa conosco.

Assim como os pais não podem apenas dizer sim aos filhos, o universo também se encarrega de fechar algumas portas na nossa cara, dizer uns nãos bem sonoros e, muitas vezes, nos dar uma bagagem que julgamos bem além das nossas forças carregar.

Eu confesso que por muito tempo culpei a tudo e a todos, mesmo que na maioria das vezes inconscientemente, pelo que aconteceu ou deixou de acontecer comigo.  Eu, silenciosamente, atribui aos outros a responsabilidade por ter me colocado à margem da minha própria vida e permitido me quebrar em mil pedaços para deixar os outros de pé, ilesos, sem nem mesmo trincos ou rachaduras.

Eu culpei a tudo e a todos sem perceber que a culpa era minha, apenas minha, porque as pessoas só fazem conosco aquilo que permitimos.

A Esclerose Múltipla, assim como outras doenças autoimunes, configura-se no ataque do meu corpo a mim mesma e eu nunca tinha parado para refletir no porquê disso acontecer. As pesquisas até hoje esbarram apenas em teorias. Não existe nada que esclareça de forma elucidativa e inequívoca o que faz com que o que devia nos defender de invasões externas - o nosso sistema imunológico - como que num ataque de fúria, passa a entender que elementos essenciais ao perfeito funcionamento do nosso organismo sejam inimigos impiedosos e se empenha em combatê-los.

Então, fazendo uma analogia entre a patologia autoimune e os ataques que permiti acontecer às minhas emoções, os aviltamentos aos meus sentimentos e a voluntariedade, mesmo que sem perceber, com que abri as portas da minha existência para que fizessem bagunças imensuráveis, eu percebo o quanto fui responsável por ter deixado de viver alguns sonhos e por ter me deixado estraçalhar em pedaços, de tal forma, que tive de me remendar inteira.

Porém, se eu não posso apertar um botão de pausa e impedir que novos ataques ao meu sistema nervoso central aconteça, eu tenho o poder de mudar minha forma de enxergar o mundo e parar de atribuir a responsabilidade pelo que fiz ou pelo que faço comigo mesma aos outros. Eu sou a única responsável pela minha vida e pela minha própria felicidade. Apenas eu, e tão somente eu, posso escolher entre me fazer de vítima ou assumir as rédeas da minha vida, deixando de permitir que pessoas me estilhacem com suas atitudes, pois apesar de não ser inquebrável, posso me tornar bem flexível,  se eu quiser.

Eu sei que não é fácil, pois teorizar é bem mais simples do que colocar em prática, uma vez que têm dias que a bagagem fica tão pesada que não encontramos energia nem ao menos para pensar. No entanto, eu sei também que esses dias passam, que a inércia forçada provocada pela minha companheira de vida dá uma trégua e me permite sair do estado de repouso e partir para o movimento, retomando a responsabilidade de me permitir viver com alegria, buscando ser o melhor que eu puder ser para mim mesma.

Eu tenho Esclerose Múltipla, tenho sonhos perdidos, tenho cicatrizes profundas na alma, mas preciso enxergar que isso não é culpa de ninguém, não é culpa da vida, nem do universo e, mesmo as responsabilidades que posso atribuir a mim mesma, não são motivos para que eu me autoflagele, pois, muito mais que perdoar aos outros, eu preciso perdoar a mim mesma a fim de me permitir ser o suficientemente forte para seguir vivendo desprendida das culpas que, embora as assuma, não preciso carregar pela vida inteira.

Perdoar-se exige uma profunda introspecção, mas eu sempre mergulhei nas profundezas...

Beijos carinhosos!