Um dia você acorda com dores tão fortes nas pernas que não tem como deixar de ir ao médico. Lá você tem suas pernas examinadas e ouve: não há nada que justifique estas dores, mas, se quiser secar os vasinhos, basta ver o valor e marcar com a recepcionista. Você sai frustrada do consultório e sem qualquer diagnóstico. As dores vão, voltam, vão voltam, as idas aos médicos se repetem e nada de saber o que te provoca as dores...
Outro dia você acorda e o mundo inteiro gira ao seu redor, seus pés parecem que flutuam, você balança de um lado pro outro sem ao menos sair do lugar. Agora você vai ao neurologista, ele te pede um exame otoneurológico e você depois de fazê-lo volta vomitando pelo caminho, sentindo a cabeça rodar insanamente e as tonturas vão a níveis insuportáveis. O resultado não detecta alterações, mas te medicam para labirintite mesmo assim. Passados alguns dias você melhora, mas vez ou outra a tontura volta, o ciclo se repete, vários neurologistas e nenhum solicita uma ressonância magnética. As tonturas vêm e desaparecem mesmo sem tratamento...
Numa madrugada você acorda com dores fortíssimas no joelho, amanhece, você vai ao ortopedista e ele te engessa a perna inteira. Diagnóstico: tendinite. Outra madrugada, dores nas mãos, mesmo ortopedista, mãos engessadas. Diagnóstico: tendinite. Outro dia, dores pelo corpo inteiro, tiram o gesso, te mandam para o reumatologista, bateria de exames, nada alterado, você perambula por onze especialista e ninguém te diagnostica. Quatro meses de cama, sem andar, até que aos poucos as dores cessam e você vai retomando a rotina, mesmo que a cada dia com mais dificuldade e sem saber o mal que te afeta...
Você dorme a noite inteira e acorda pior do que quando se deitou. Se arrasta diariamente para sair da cama. Faz um esforço sobre-humano pra realizar as tarefas diárias. Começa a ser vista como preguiçosa, dramática e outros adjetivos nada agradáveis. Idas ao médico novamente. Diagnóstico: carência de vitaminas e sedentarismo. Você se entope de vitaminas, se matricula numa academia, vai um dia e fica sete quase imóvel de tanta fadiga. Seu corpo não responde aos comandos do cérebro, mas você vai além dos seus limites, até que se vê obrigada a desistir das aulas de musculação e voltar ao sedentarismos por exaustão física e emocional...
Diante de tantos sintomas, você não consegue mais ficar longe da depressão, pois seu lado emocional vive numa gangorra, oscilando entre as dores, a fadiga, a incompreensão e o não saber o que te acomete. Você tem uma crise emocional e no hospital o médico te diz que tudo o que você sente é psicológico e, para te derrubar de vez, te manda ler a bíblia que você vai melhorar. Você sai de lá pior que chegou e procura um psiquiatra que te passa antidepressivos e você, ao ingeri-los, se sente um pouco melhor, mas é só um paliativo, pois o corpo continua igual...
Até que um dia você acorda e acredita que teve um AVC, seu lado esquerdo está sem sensibilidade, mas dói, sua perna não obedece aos seus comandos e você, terrivelmente assustada, volta ao hospital. Diagnóstico: inflamação na região dos pinos que você possui no tornozelo. Recebe receita de anti-inflamatório e mais nada. Nenhum RX sequer foi feito. Os dias passam, a medicação não faz efeito algum e a perda de sensibilidade divide seu corpo ao meio. Cinco médicos te examinam e reafirmam o diagnóstico inicial até que o que operou seu tornozelo descarta a possibilidade ortopédica e te encaminha para um neurologista...
Chega o dia da consulta e você acha a médica maluca, afinal, você está com o corpo dormente, sem coordenação na perna e ela te pergunta se você enxerga direito e se urina normalmente. Mas, pouco tempo depois você entende o porquê de tantas perguntas, pois você recebe o diagnóstico de Esclerose Múltipla e, junto com ele, medo e alívio. Medo pelo futuro, alívio por acabar, ao menos em tese, as perambulações pelos consultórios e hospitais.
Isso tudo que descrevi foi minha trajetória até descobrir o mal que me acometia. Durou certa de uns 18 anos aproximadamente. Verdade, se passaram pelo menos 18 anos desde os primeiro sintomas até o diagnóstico há 3 anos.
Não foi nada fácil, vivi momentos de desolamento profundo, de dores imensuráveis, de desespero mesmo. Mas sobrevivi e estou sobrevivendo a cada dia. Por isso, quando ouço que tenho de ser forte, que não posso desistir, que devo olhar ao redor pra ver quantos estão em situações piores que eu, eu só tenho como resposta que, se diante de tudo o que vivi até saber o que tinha, eu não desisti, por que iria desistir agora que sei exatamente quem é meu oponente nessa batalha que a vida me deu?
Beijo corajosos!
Eu estava sentada na plateia do teatro, aguardando o começo do monólogo "Se fosse fácil não teria graça" encenado por Nando Bolognesi que aguardava, também, pelo começo da peça sentado numa cadeira no canto direito do palco. Á princípio, meus olhos fixaram-se apenas em seu rosto, mas, num relance, pude perceber as muletas pousadas, estrategicamente, no chão, uma de cada lado dos pés da cadeira. Nesse momento, foi que me lembrei de que ele, assim como eu, era esclerosado. Disso eu já sabia, mas, como ele mesmo diz durante a apresentação, só me caiu a ficha, ou melhor, me passaram um whatsapp, no momento em que meus olhos pousaram nas muletas.
Então, olhei para a plateia a minha volta e me perguntei, mentalmente, quantos esclerosados, como eu e o Nando estavam ali naquele instante. Realmente nunca vou saber a resposta, pois em momento algum isso foi questionado a nós espectadores. No entanto, de algo eu tenho certeza, assistir a peça sendo esclerosado tem um significado muito, mas muito diferente de assistir não possuindo a doença e, mesmo os que convivem com esclerosados, nunca vão entender a real dimensão do que é ouvir as piadas feitas por ele sobre as situações embaraçosas vivenciadas por conta da Esclerose Múltipla.
A forma como ele aborda a chegada dela em sua vida, o seu desenvolvimento, as limitações que ela foi lhe impondo e o seu constante reinventar-se, arrancou risadas do público e minhas também, mas na maioria das vezes meu riso foi um riso nervoso, um riso de assentimento, como se eu tivesse dizendo pra ele: como eu te entendo, como eu sei exatamente do que você está falando... e, mesmo quando ele falou de sintomas que eu não tenho, mas que eu sei que não estou livre de vir a desenvolver, uma vez que a Esclerose Múltipla é completamente imprevisível, eu senti na própria pele o que é precisar transformar-se, dia-a-dia, a fim de seguir adiante e não se deixar dominar pelos desmandos da enfermidade.
No desenrolar da peça, pude ir traçando paralelos entre cada perda dele e cada uma das minhas perdas, entre cada uma das vezes que fui desviada dos meus projetos e tive de retraçar novos planos, entre cada renascer dele e cada ressurreição minha. Cada fase, cada perda, cada conquista, cada lágrima engolida, cada sorriso retirado do fundo da alma a fim de tornar a vida menos dolorosa, cada vitória um motivo para para comemorar em dobro... eu me vi naquele palco, contando minha história.
O espetáculo é uma lição de vida para todos, esclerosados ou não, pois fala de superação e de reinvenção da própria existência. Foi um grande presente, um presente maravilhoso que vou levar comigo e usar como inspiração para os momentos em que eu precisar me reinventar, outra vez.
Beijos agradecidos!
Um dia de trabalho exaustivo, o corpo cansado, o chegar em casa, um banho relaxante, uma boa noite de sono... e o corpo pronto, de manhã, para mais um dia de trabalho.
Uma virose daquelas de derrubar, dor no corpo inteiro, até os fios de cabelo doem, medicamentos, muito líquido... e o corpo recuperado para retomar a rotina diária.
Uma noite de insônia por um motivo qualquer, um rolar na cama de um lado pro outro, sonolência diária, uma noite de sono compensatória e, no dia seguinte, um corpo renovado.
Todos estão sujeitos a situações como essas e muitas outras que mexem com nosso corpo, com a nossa rotina e a nossa alma. Todos podem contrair doenças, ficarem exaustos por várias razões, mas, excetuando as doenças crônicas, são situações transitórias que passam após um período de tratamento ou descanso.
Eu tenho Esclerose Múltipla e minha fadiga não passa após uma noite de sono, minha dor não cede com analgésicos, minha insônia não se cura sozinha quando eu relaxo...
Eu não estou superestimando minha doença e os sintomas que ela me provoca em detrimento do que os demais seres humanos, enfermos ou saudáveis, sentem, longe disso... o que eu quero é que não menosprezem o que eu sinto, não comparem minhas dores com as dores dos outros, mesmo porque, dor não se compara.
O que eu quero é que não digam que minha fadiga é sedentarismo, ou preguiça, ou um cansaço que umas horas de descanso e um banho podem resolver.
O que quero é que entendam que a Esclerose Múltipla não tem cura conhecida e que o fato de eu aceitar isso não significa que não tenho fé, pois, se não tivesse fé na vida, nos dias em que não consigo achar posição para dormir de tanta dor, eu simplesmente desistiria e não me levantaria mais da cama
O que quero é que se conscientizem de que se eu fosse fraca como muitos acreditam, eu não me autoaplicaria uma medicação que, notadamente, me deixa pior no dia seguinte, que me provoca reações debilitantes, mas que por outro lado desacelera a progressão da doença. Se isso não é ser muito forte, o que é então???
O que eu almejo é nunca mais ser comparada com outros esclerosados, não porque os meus sintomas sejam piores ou mais importantes do que os deles, mas porque apenas somos diferentes, uma vez que a Esclerose Múltipla não evolui da mesma forma em todos que a possuem.
O que eu quero é que respeitem meus momentos de melancolia, de choro, de desabafo e que não me tachem de depressiva ou de negativa, afinal, eu sou tão humana como o restante da humanidade.
O que eu preciso é que não me olhem com piedade, mas sim, que me olhem com respeito e enxerguem o quanto eu luto para ficar o melhor possível, dentro do que é possível estar, carregando essa bagagem tremendamente pesada que se atrelou a mim.
O que eu necessito é de compreensão, de apoio e de poder viver meus momentos de desalento sem críticas, seja dos dito saudáveis, seja dos próprios companheiros de doença que, muitas vezes, como tenho visto, por terem esclerosado recentemente, por não terem reações aos medicamentos, por não terem sequelas, acreditam que a bagagem vai continuar sendo leve para sempre (de coração, espero que tenham razão nisso) e se sentem no direito de julgar os que já estão usando todas as suas forças para arrastarem a mala sem alça da Esclerose Múltipla.
Beijos doloridos e fadigados no coração de todos!